O Grande Teatro Oficina
Camila Mota conversou sobre a arquitetura de Lina Bo Bardi, o legado de Zé Celso e muito mais
Camila Mota começou a conversa contando que na comemoração dos cem anos de Lina Bo Bardi, o Teatro Oficina Uzyna Uzona colocou dentro do espaço uma betoneira manual para fazer um cavalete. O primeiro contato da artista com o grupo foi em 1994, no Rio de Janeiro, assistindo à peça Hamlet, no Parque Lage. Camila já era atriz e trabalhava em uma companhia muito diferente do Oficina. “Assisti a Hamlet e fiquei muito impressionada; arte e vida estavam misturadas e o processo coletivo me chamou a atenção.” A atriz também falou sobre o universo incrível que se abre quando alguém entra no Teatro Oficina. Ela passou a conhecer diversos outros artistas, como as cantoras da era do rádio. “Trabalhar com o Zé Celso significou mergulhar em todo um repertório dos anos 40, 50, 60”.
Dois anos depois Camila assistiu ao espetáculo Bacantes e passou a conversar com o ator Marcelo Drummond e Zé Celso. Seus amigos arquitetos, no Rio de Janeiro, diziam que o Teatro Oficina era o teatro mais lindo do mundo. “Não dava pra entender o que era cena e o que era fora de cena, e essa insegurança é fundamental para a experiência de quem assiste a uma peça lá.” Segundo Camila Mota, o coeficiente de incerteza do Oficina é enorme, e isso desamarra as pessoas. “O Oficina pede um certo mergulho”, ela disse.
Seu começo com a companhia foi, segundo ela, um vexame. Era início de um processo curto, o Rala o Grelo – espetáculo musical que encerrava as atividades de um projeto do SESC chamado Babel, do qual participaram muitos outros artistas: Kazuo Ohno, Gerald Thomas, músicos, artistas plásticos, etc. O Teatro Oficina foi convidado a fazer um programa de auditório, apresentado para cinco mil pessoas embaixo da cobertura de um posto de gasolina onde hoje é o SESC Pinheiros. E foi um vexame!
“Minha estreia no Oficina foi uma grande catástrofe.”
O Teatro Ofcina, com sua arquitetura que traz a incerteza, é um paraíso para os multiartistas; se a pessoa tem uma vocação para isso, o espaço é perfeito para desenvolver muitas habilidades - canto, dança, atuação. “Ele propicia o desenvolvimento de muitas frentes”. Na conversa, Camila Mota também fez questão de citar outras artistas mulheres que se formaram na linguagem do Teatro Oficina, como Cibele Forjaz, Ítala Nanda, Catherine Hirsch, entre outras.
“O Zé Celso sempre captou o espírito do tempo.”
Zé Celso falava muito sobre a diferença entre diretor e direção. Camila explicou que a direção do espetáculo poderia ser feita a partir de muitos lugares: de uma criança, de uma árvore que balança, de um ator novo na companhia. “O Zé trabalhava com as matérias que ele encontrava, durante o processo.”
Outro ponto abordado pela artista foi a autorresponsabilidade que o Teatro Oficina pede de todos os seus integrantes. Por ser mais anárquico do que outras companhias - nas quais, às vezes, todos devem fazer o mesmo aquecimento, o mesmo treinamento - o Teatro Oficina pede que cada artista saiba se organizar e compreender o que precisa fazer em cada processo criativo e cada apresentação. O que comer, beber, etc. “Quem ficava esperando direcionamento do Zé o tempo todo às vezes se perdia.” Camila também falou sobre os caminhos que estão se traçando com o Teatro Oficina sem a figura do Zé Celso, ou seja, com muitas direções possíveis. “Zé sempre foi um ser coletivo, uno e múltiplo.” Camila Mota enfatizou que agora há espaço para muitos desejos, mas há desafios também.

“O Zé tinha uma disciplina rara em todas as paixões.”
Em relação à arquitetura, Camila Mota contou que o Teatro Oficina nasceu para atender a um repertório de espetáculos da companhia. “A forma que remete à rua nasce a partir da necessidade da peça Mistérios Gozozos, por exemplo: um poema que se passa no mangue e na rua.” Além disso, a rua entra no Oficina em 1969, quando Lina era diretora de arte e começa a colocar objetos da rua para dentro do teatro, como tijolos, colchões, mesinhas. Com a construção do Minhocão, ela encontrava destroços nos arredores do teatro.
A artista explicou que a arquitetura do teatro cria um espaço para a imprevisibilidade: é possível escutar a chuva que cai, o barulho do helicóptero e eventos que acontecem do lado de fora. Ao mesmo tempo, é um pouco mais protegido do que a rua propriamente dita. “Está tudo em cena o tempo todo, não tem bambolina nem coxia; a depender de onde você se senta, você enxerga os atores trocando de roupa.” A artista também falou sobre como o Teatro Oficina permite que o ator tenha um corpo inteiro, com frente, costas e lados.
Outro tema abordado na conversa foi o processo de tombamento do Teatro Oficina pelo IPHAN e o processo relacionado ao Parque do Rio Bixiga. “O tombamento propiciou que mais pessoas compreendessem a importância do Parque.” Um dos argumentos de quem é contra o Parque se apoia na ideia dos custos que ele teria para o poder público. Entretanto, muitos dos empreendimentos privados que estão sendo feitos em São Paulo também trazem custos para o poder público; Camila citou como exemplo um empreendimento imobiliário feito no seu bairro, Liberdade, que gerou problemas de saneamento. A Sabesp precisou fazer reformas caríssimas que duraram mais de três meses.
A artista também fez questão de dizer que as disputas em relação ao terreno ao lado do Teatro Oficina não constituem uma briga entre Zé Celso e Silvio Santos, como foi propagado pela mídia nos últimos anos. “Essa polarização atrapalha; as pessoas não percebem questões importantes que o Parque do Rio Bixiga traz, como emergência climática, gentrificação e direito à cidade.” O que está em jogo nessa disputa é uma área localizada entre as ruas Jaceguai, Abolição, Japurá e Santo Amaro, no bairro do Bixiga. São 11 mil m2, equivalente a um campo e meio de futebol, ou quase a metade do Parque Augusta. Além disso, é uma disputa entre diferentes visões sobre a cidade. Enquanto uma valoriza edifícios comerciais e residenciais, outra propõe um parque público, com área verde, horta urbana e teatro a céu aberto.
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Quem é Camila Mota: Atriz, dramaturga, diretora, compositora e artista visual. Chegou ao Oficina em 1997 e, desde então, colabora com o grupo, encabeçando uma das principais vozes do coletivo. E, em 2023, se tornou a primeira mulher a dirigir um espetáculo do grupo, com a peça Mutações de Apoteose.